Moro no RJ há muitos anos, e há algum tempo vi um caminhão atropelar um ciclista por um motivo ridiculamente evitável e banal, por simples descuido.
O ciclista, um catador de latinhas, havia reduzido a velocidade da bicicleta e se desequilibrou só um pouquinho. Mas, como é de se ver tanto por aí em situações parecidas, ele não teve lá aquela preocupação com os outros ao redor e deu aquela valorizada no desequilíbrio, jogando a bicicleta para o lado. Em 99% das situações a bicicleta se reequilibra e ele segue, apenas dando aquele “susto” despropositado em eventuais pessoas ou motoristas ao redor. Só que, como ele usou certo jeito tão difundidamente descuidado, a bicicleta não ajudou, o reequilíbrio não ocorreu e ele foi caindo, caindo daquele modo que parece em câmera lenta, como se o descuidado desse mãos à fatalidade a conta-gotas, abrindo espaço para a ela até que ela tome conta.
E lá atrás vinha um caminhão. O motorista fazia como tantos outros caminhoneiros e, mesmo com o caminhão carregado, não se importava muito seriamente com os limites de velocidade, mesmo nas ruas internas da cidade. E também como tal, o motorista é daqueles tantos que gostam de fazer (com o carro) curva aberta em esquina na terceira marcha e só reduzir caso precise, de jogar o carro em cima do pedestre mesmo quando ele tem razão, enfim, de usar a mesma habitual grosseria e descuido com o alheio à qual o ciclista também é familiarizado.
E o motorista vinha a certa velocidade, não muito alta mas suficiente para fazer um estrago. De repente, ele se deparou com o ciclista, mas não o ciclista em sua frente já caído, e sim o ciclista naquele ato de queda em câmera lenta. Enquanto motorista médio, o primeiro ímpeto do motorista, como que por um segundo, foi o de não frear, já que a má educação é patrimônio imaterial de certos lugares. Mas já no momento seguinte o motorista nota que a situação não é mais uma tosquice cotidiana, porém real e séria, e então freia o caminhão com toda força.
O resultado é aquela freada em “soco”, na qual ao final o caminhão dá aquela batida seca. E a batida coincide exatamente com o fim da queda do ciclista, como que dando aquele tranco em suas costas e bacia, engolindo a bicicleta e lançando o ciclista a 1,5m do caminhão.
A reação do povo ao redor é a de um linchamento às avessas: num linchamento, as pessoas se revoltam e querem partir para cima do ladrão, agressor ou o que o valha. Mas num acidente o princípio é o mesmo, porém inverso: elas querem restituir logo a saúde. Por isso o primeiro ímpeto é o de tirar a pessoa da frente do caminhão, restituir rapidamente a boa ordem. Duas pessoas puxam o atropelado pelo braço e a sorte é que havia alguém a impedir isso enquanto a ambulância não chegava (afinal, se a pessoa está fraturada e é grave, uma remoção sem os devidos cuidados apenas piorará a situação).
É claro que a rede de descuidados, nessa situação, se multiplica: o “acidente” produz uma fila com aquele espetáculo grotesco de pessoas apenas preocupadas em passar (quase causando outros “acidentes”), as autoridades mostram característico descuido e - exceto, talvez, pelos bombeiros - falta de profissionalismo. Os boatos e memes também começam a pulular.
Mas o impressionante, nesse tipo de situação, é a série de descuidados, negligências, de pouco caso consigo e com os outros.
É como pensar em tantas situações cotidianas, que incrivelmente certos lugares consideram tão naturais quanto a queda dos corpos.
No mesmo RJ, é quase um outro patrimônio natural as pessoas não darem lugar ao outro no transporte público, mesmo quando o banco ao lado está vazio. Só que não se resume a isso: não é apenas não dar lugar, e sim deixar os pertences, ou a perna ou parte do corpo, no lugar a ser ocupado, ou até já ocupado, pelo outro.
Os casos são surreais, e tão mais frequentes se a pessoa que precisa sentar ao lado é uma mulher. Por uma espécie de mistura entre dissimulação e naturalização do desrespeito, quem ocupa um lugar fica ali e se arroga no direito de ocupar o “território” por algum direito não declarado de “ter chegado ali primeiro”. Pois, se uma homem senta ao lado, é incrível como a questão parece territorial. E quando uma mulher senta ao lado, a probabilidade de algum tipo de assédio se multiplica.
Esses “descuidados” não parecem em nada ser diferentes daqueles do ciclista, do motorista e de tantos outros. A coisa se assemelha a uma rede na qual as pessoas cumprem uma aposta não declarada, a de que “não vai dar nada” e ao fim tudo ficará bem, mesmo que isso gere ocasionalmente algum prejuízo ao alheio. Afinal, há também toda uma instituição para o caso de “dar merda”, instituição que é tão mais eficiente quanto o número de aliados pessoais de alguém.
E esse tipo de relação, baseada num suposto descuidado (e que ao fim é uma espécie de negligência geral tácita), se multiplica em todo lugar. Está no serviço que não anuncia o preço, no prestador que varia a qualidade do serviço conforme o tipo de relação pessoal que tem com o cliente, enfim, por vezes parece um fantasma a imperar em muitas situações, especialmente as da rua.
Essas relações se institucionalizam, tomam forma, tornam-se concretas, chegando até nos gabinetes públicos (quem não conhece a figura do burocrata que é o soberano da própria mesa?). Elas não passam daquilo que estudiosos como Sergio Buarque chamava de “homem cordial”. E a ironia é essa noção buarqueana ser confundida, como se cordial significasse “prestativo e afetivo”. Mas Buarque chamava a atenção ao termo latino coração, Cordis, que significa agir em âmbito privado antes de pensar na esfera pública.
Daí em diante, o fluminense por vezes se surpreende. Afinal, esse cotidiano de pouco caso na rua pode atingir níveis gravíssimos, em relatos surpreendentes como o dos cariocas que querem ter um dia normal e tomar café, mas lá fora passam helicópteros e rajadas de fuzil. A pergunta então se torna inevitável: como é possível ter uma vida verdadeiramente normal assim?
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